A Influência do Gnosticismo nos JRPGs: O Fascínio Japonês por Batalhas Contra Deus
Fãs veteranos de Final Fantasy, Shin Megami Tensei e outras franquias icônicas de JRPGs já perceberam que muitos desses jogos trazem confrontos contra divindades como parte central da narrativa. Esse elemento, que pode parecer inusitado, é surpreendentemente recorrente na mídia japonesa e tem uma ligação curiosa com o gnosticismo, um sistema de crenças que surgiu no final do primeiro século d.C.
Algumas franquias, como Xeno, incorporam fortemente conceitos gnósticos, enquanto outras séries de longa duração também flertam com essas ideias em algum momento de sua história. O gnosticismo, em termos simples, vê o mundo material como imperfeito ou até mesmo corrompido. Nessa visão, um ser maligno conhecido como Demiurgo (ou Yaldabaoth) é responsável pela criação da realidade física, que funciona como uma prisão para a alma, impedindo-a de alcançar a iluminação.
Gnosticismo e Sua Presença nos JRPGs
O gnosticismo foi uma das primeiras doutrinas a divergir do cristianismo primitivo e foi considerado uma heresia pela igreja. Para os gnósticos, havia um ser supremo e perfeito, chamado Mônada, que era a verdadeira fonte de luz e vida divina, conhecida como Pleroma. As emanações do Pleroma incluíam os Aeons, entidades angelicais, e, em alguns casos, a própria alma humana. O Demiurgo, por sua vez, impedia a humanidade de se conectar com esse plano superior, contando com a ajuda dos Arcontes, seus principais servos.
Esse conceito aparece de maneira recorrente em diversas mídias japonesas. Neon Genesis Evangelion, por exemplo, mergulha profundamente em simbolismos gnósticos, combinando-os com elementos da Cabala e outras tradições esotéricas. Filmes como Matrix também exploram essas ideias, representando o mundo virtual das máquinas como uma versão moderna da realidade ilusória criada pelo Demiurgo.
Porém, é no mundo dos JRPGs que o gnosticismo aparece com mais frequência e consistência. O gênero combina perfeitamente com essa filosofia, pois seus protagonistas geralmente começam como personagens comuns e, ao longo da jornada, se tornam incrivelmente poderosos. Esse crescimento progressivo ecoa a ideia gnóstica de que os seres humanos possuem um potencial divino adormecido e que há forças que tentam impedi-los de alcançar esse poder.
Por Que o Gnosticismo Fascina a Cultura Pop Japonesa?
Pode parecer curioso que uma tradição religiosa ocidental relativamente obscura tenha influenciado tanto a mídia japonesa. No entanto, assim como muitos JRPGs se inspiram nos mitos de H.P. Lovecraft, elementos do gnosticismo parecem ressoar com os criadores japoneses.
Além disso, a jornada de personagens que desafiam sistemas opressores e reconfiguram a realidade se encaixa bem na estrutura narrativa do gênero. Muitas histórias apresentam protagonistas que, ao enfrentarem uma divindade ou entidade controladora, desafiam não apenas a ordem do mundo, mas também sua própria condição existencial.
Diferente do que alguns poderiam pensar, essa abordagem não é necessariamente uma rejeição às religiões ocidentais. Para muitos fãs, os JRPGs estão mais preocupados em explorar temas filosóficos e simbólicos, oferecendo reflexões sobre o destino, o livre-arbítrio e o papel do ser humano no universo.
Enquanto jogos ocidentais como God of War e Hades recontam mitos gregos e nórdicos, os JRPGs foram, possivelmente, os principais responsáveis por trazer conceitos gnósticos para o entretenimento moderno. Apesar de não ter se consolidado como uma grande religião ao longo da história, o gnosticismo deixou uma marca profunda no gênero, influenciando histórias e mecânicas que continuam a fascinar jogadores até hoje.
Por Que o Gnosticismo Ressoa Tanto nos JRPGs?
A influência do gnosticismo no mundo dos JRPGs, bem como em outras produções culturais japonesas, acontece por diversos motivos. Essa influência reflete o modo como o Japão explora mitologias, filosofias e religiões ocidentais de maneira estética e conceitual, adaptando esses elementos para expressar temas universais.
1. Temas Existenciais e Dualidade
O gnosticismo é fortemente dualista, retratando o mundo material como uma ilusão ou prisão. Essa noção é explorada em Xenogears, Shin Megami Tensei e Final Fantasy, onde protagonistas enfrentam deuses e entidades opressoras. Esses jogos enfatizam a busca por iluminação e liberdade, elementos fundamentais na filosofia gnóstica.
2. O Fascínio Japonês por Religiões Ocidentais
Desde a Restauração Meiji, o Japão passou por um processo de ocidentalização, desenvolvendo uma grande curiosidade sobre filosofias estrangeiras. O gnosticismo, por ser menos conhecido e recheado de simbolismo esotérico, oferece uma base intrigante para narrativas profundas e exóticas.
3. Crítica Social e Alienação
Muitos JRPGs usam temas gnósticos para criticar estruturas sociais opressoras. No gnosticismo, o Demiurgo aprisiona a humanidade em uma realidade falsa. De forma similar, protagonistas de JRPGs lutam contra sociedades autoritárias, manipuladoras e injustas.
Neon Genesis Evangelion, por exemplo, usa esses conceitos para explorar a alienação e o vazio emocional dos personagens, ressoando com a pressão social vivida no Japão moderno.
4. Simbolismo e Profundidade Narrativa
Os elementos gnósticos adicionam profundidade e mistério às histórias. Xenogears, por exemplo, incorpora filosofia gnóstica em uma narrativa complexa, criando um mundo rico em questões existenciais.
5. Liberdade Criativa
Diferente de mitologias tradicionais, o gnosticismo não possui um sistema religioso estrito no Japão, permitindo aos criadores explorá-lo sem receios. Dessa forma, os JRPGs reinterpretam e ressignificam o gnosticismo, usando seus conceitos para explorar temas universais.
O gnosticismo não é apenas uma apropriação cultural, mas um meio de explorar questões profundas e existenciais nos JRPGs. Essa fusão entre temas ocidentais e valores japoneses tornou-se uma marca registrada do gênero, proporcionando histórias envolventes e instigantes que desafiam nossa percepção da realidade.
Minha Avaliação Cristã sobre esse assunto
Devemos, sim, ter cuidado com a bagagem simbólica oferecida em mangás e, principalmente, em RPGs que têm o gnosticismo como tema mitológico. Afinal, essas produtoras utilizam uma vasta pesquisa para compor nomes e conceitos no processo criativo. Isso não significa que os produtores estejam apoiando ou divulgando tais entidades, mas, durante a estruturação do enredo, livros como grimórios, lendas e folclores são frequentemente consultados para basear personagens. Isso acaba resultando na presença de conceitos demoníacos mesclados com cabala, magia, alquimia, entre outros.
Se você é um cristão maduro, que possui discernimento sobre esses temas, sabe não ser influenciado pela arte e pelo entretenimento e consegue filtrar boas mensagens das ruins, então saberá escolher quais RPGs são lícitos ou não. Mas, para emitir minha opinião sobre o gnosticismo como molde de contos e games, irei usar como exemplo o jogo Final Fantasy Tactics.
Toda a série Final Fantasy tem o gnosticismo como tema central, o que se percebe na interpretação da tecnologia como uma forma de magia manipulada de diferentes maneiras. A série brinca com esse conceito ao demonstrar que a magia pode ser usada tanto de maneira rudimentar quanto integrada à tecnologia. A ideia de um povo original, que se comunicava de forma mais profunda com a magia, também é um conceito fortemente gnóstico.
Entretanto, Final Fantasy Tactics apresenta um tom mais pesado, pois se passa no período medieval e retrata uma igreja influente e poderosa. Essa igreja, no entanto, é apenas uma fachada para uma seita organizada que, em segredo, adora uma espécie de messias que, na verdade, é um ser das trevas. À primeira vista, pode parecer que o enredo representa a igreja como uma instituição enganadora, controlada por uma seita opressiva, e que seu objeto de adoração é um ser diferente do que se diz ser.
No entanto, precisamos considerar alguns pontos que contextualizam esse tipo de narrativa:
1 - A Representação da Igreja na Ficção Não é Necessariamente Anticristã
O fato de a Igreja medieval ser retratada como uma seita em alguns jogos não significa, necessariamente, que esses jogos sejam anticristãos. Embora essa representação não corresponda à realidade, muitas denominações protestantes e até mesmo algumas católicas sempre condenaram os atos da Inquisição e, ao longo da história, interpretaram a Igreja Católica como uma instituição que teria se entregado ao obscurantismo, ao paganismo e à idolatria.
Tanto que, até hoje, é comum encontrar cristãos questionando se o Papa seria o anticristo. Sendo assim, quando jogos ou literaturas imaginam a igreja organizada como o berço de um falso messias, essa não é, necessariamente, uma ideia anticristã, mas sim uma interpretação baseada em percepções históricas.
2 - O Uso do Gnosticismo Como Inspiração para Mitologias Ficcionais
Assim como jogos ocidentais criam mundos inspirados em diversas mitologias — onde as divindades dessas religiões são adversárias (como em God of War e Assassin’s Creed, que exploram as mitologias grega e nórdica) —, os desenvolvedores japoneses, ao buscar uma mitologia ocidental para suas histórias, evitam usar diretamente o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo, por respeito.
Eles encontram, então, no gnosticismo — uma corrente sincrética que mistura elementos dessas três grandes religiões — uma fonte rica para criar narrativas baseadas na simbologia ocidental, sem utilizar dogmas ou nomes sagrados. Assim, conceitos como cabala, numerologia, alquimia, templários e ordens religiosas aparecem como elementos estéticos, mas sem ligação direta com a fé cristã.
Por isso, esses jogos não estão falando sobre os anjos cristãos, os líderes judaicos ou as Escrituras Sagradas. Pelo contrário, eles criam um universo inspirado na mitologia gnóstica. O inimigo final, nesses jogos, não é um Deus verdadeiro, mas sim um ser fictício — que pode ser um alienígena, uma máquina, um anjo ou qualquer outra entidade dentro daquele universo imaginário.
Nos JRPGs japoneses, o conceito de divindade é tratado da mesma forma que ocorre em jogos mitológicos ocidentais: as entidades são enfrentadas uma a uma, mas sua origem e significado pertencem ao mundo ficcional do gnosticismo, não à fé cristã.
3 - Igrejas na Ficção São Inspiradas na Estética Medieval, Mas Não São Igrejas Cristãs
Muitos desses jogos se passam no período medieval e, por isso, utilizam conceitos como igrejas, cultos, cavaleiros, reis, princesas, alquimistas e magos para compor a estética do mundo. No entanto, essas igrejas não são necessariamente igrejas cristãs — elas apenas se inspiram na aparência da instituição medieval, pois esta foi a organização mais importante da época.
Mas, no jogo, essas igrejas são reinventadas com outras crenças e propósitos. Em Final Fantasy, por exemplo, as igrejas retratadas não possuem santos, cruzes ou qualquer símbolo cristão — apenas a arquitetura gótica, que remete à Idade Média. O mesmo ocorre em The Legend of Zelda: Breath of the Wild, onde as igrejas possuem estátuas de uma divindade fictícia, e não de figuras cristãs.
Ou seja, os desenvolvedores usam a estética da Igreja medieval como inspiração, mas criam um contexto totalmente diferente. Em Final Fantasy Tactics, por exemplo, a história se passa depois de períodos tecnológicos, invertendo nossa própria linha do tempo. Isso reforça que o jogo não está tentando representar a história real, mas sim construir um universo fictício.
4 - O Conceito Cristão do Anticristo e Sua Representação nos Jogos
Dentro da teologia cristã, sabemos que o anticristo enganará até mesmo os próprios cristãos. Ou seja, a liderança demoníaca terá uma aparência religiosa e política disfarçada. Nossa escatologia entende que o falso messias será um impostor que tentará se passar por Cristo.
Sendo assim, os jogos não estão errados ao mostrar um falso messias sendo enfrentado, pois é isso que ele representa: não o Deus verdadeiro, mas um usurpador, um cristo esotérico que engana as pessoas. Isso está alinhado com a própria profecia cristã sobre o fim dos tempos.
Em Final Fantasy Tactics, as seitas retratadas no jogo não seguem um discurso cristão — pelo contrário, seus ideais são baseados em esoterismo, igualdade humana forçada, evolução espiritual e a criação de um novo paraíso na Terra. Esses conceitos são característicos de correntes gnósticas e ocultistas, não do cristianismo.
Portanto, os deuses enfrentados nos JRPGs japoneses não representam (pelo menos na maioria das vezes) o Deus cristão, mas sim os falsos messias, os "Cristos esotéricos" — algo que, segundo nossa fé, os cristãos verdadeiros também terão que enfrentar um dia.
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