Cosmografia na Bíblia: entre o Céu, a Terra e o Submundo
Cosmografia é o nome técnico para a maneira como uma cultura enxerga e organiza o universo — uma espécie de mapa do mundo físico e espiritual. Egípcios, mesopotâmicos, judeus, gregos e até nós, modernos, temos nossas próprias versões. Enquanto os antigos viam o mundo como um disco apoiado em colunas ou flutuando sobre as águas do abismo, nós falamos em espaço-tempo e galáxias — mas ambos os sistemas descrevem como achamos que o universo “funciona”.
A Bíblia também adota uma cosmografia — não criada por revelação científica, mas herdada de seu contexto cultural: o Antigo Oriente Próximo (AOP). Nesse modelo comum às culturas da época, o universo é composto por três camadas: os céus (morada dos deuses ou de Deus), a terra (onde vivemos) e o submundo (o Sheol, morada dos mortos). Essa estrutura aparece tanto na poesia bíblica (como nos Salmos e em Jó) quanto nas cartas apostólicas (como em Filipenses e Apocalipse).
Versículos como "no céu, na terra e debaixo da terra" (Fp 2:10; Ap 5:13) mostram essa visão como uma forma de descrever a totalidade da criação. E ainda que o texto bíblico use linguagem fenomenológica — descrevendo o que os olhos veem, como quando fala do “movimento do sol” —, os autores antigos de fato acreditavam naquilo que observavam. Eles não sabiam que a Terra girava ou que o céu não era uma cúpula sólida.
Alguns cristãos modernos tentam contornar isso, alegando que a Bíblia só usa imagens poéticas ou figuradas. Mas isso ignora uma realidade simples: os israelitas antigos realmente pensavam o mundo nesses termos. Para eles, o céu era firme como um teto, o sol corria seu trajeto como um herói, e o Sheol ficava literalmente debaixo dos pés. O próprio Deus, em Jó 38, fala da Terra com alicerces e pilares — linguagem coerente com a cosmografia da época.
Como explica Seely:
“É precisamente porque os povos antigos eram cientificamente ingênuos que não distinguiam entre a aparência do céu e o conceito científico do céu. Eles não tinham motivo para duvidar do que seus olhos diziam ser verdadeiro, a saber, que as estrelas acima estavam fixadas em uma cúpula sólida e que o céu tocava literalmente a Terra no horizonte. Por isso, eles equiparavam aparência com realidade e concluíam que o céu devia ser uma parte física sólida do universo tanto quanto a própria Terra.”
Se os antigos não sabiam que a Terra era uma esfera no espaço, não poderiam saber que suas observações eram apenas aparências, e não a realidade. Se anda como um pato mesopotâmico e grasna como um pato mesopotâmico, então é bem provável que eles achassem que era mesmo um pato mesopotâmico — e não apenas a “aparência” de um, sem realidade.
O Sheol, em particular, era visto não apenas como uma cova física, mas como um mundo espiritual inferior, uma espécie de contraponto ao céu. Textos como Salmos 139:8 e Amós 9:2 mostram essa dualidade vertical entre profundezas e alturas, morte e vida, ausência e presença divina. Era mais que poesia: era o mapa mental do universo em que essas pessoas viviam.
Agora, isso significa que a Bíblia está cientificamente errada? Não. Significa que ela não foi escrita com o propósito de ensinar ciência. E aqui está uma possível solução para o dilema da imprecisão científica da geografia cósmica mesopotâmica nas Escrituras: a cultura israelita, sendo pré-científica, pensava mais em termos de função e propósito do que em estrutura material. Mesmo que sua visão dos céus e da terra como uma cosmologia geocêntrica tripartida fosse cientificamente “falsa” do nosso ponto de vista moderno, ainda assim descrevia com precisão o propósito teleológico e o significado da criação que eles pretendiam comunicar.
As forças que determinam o mundo são de mais interesse para o Antigo Oriente Próximo do que a estrutura do sistema cósmico. Seria um erro afirmar que existia uma única e monolítica cosmografia mesopotâmica. Há uma variedade de histórias com imagens sobrepostas, e algumas noções contraditórias. Uma grande variedade de noções diversas e descoordenadas sobre a estrutura cósmica foram desenvolvidas a partir de diferentes pontos de partida.”
Isso não significa que o mundo físico fosse negado ou ignorado, mas que as prioridades e interesses eram diferentes dos nossos. Portanto, devemos ser cuidadosos ao julgar essa cosmografia orientada por propósito à luz de nossa própria cosmografia orientada pela matéria. E, nesse sentido, as descrições materiais modernas da realidade são mais “falsas” do que as imagens antigas, pois não incluem o aspecto imaterial da realidade: significado e propósito.
Os escritores bíblicos não ensinaram sua cosmografia como doutrina científica revelada por Deus sobre como o universo físico é estruturado materialmente. Eles assumiram a cosmografia popular para ensinar sua doutrina sobre os propósitos e significados de Deus. Criticar o modelo cósmico que carrega a mensagem é perder totalmente o ponto — que é a mensagem. O trono de Deus pode não estar fisicamente acima de nós, em águas contidas por um firmamento sólido, mas Ele verdadeiramente reina “sobre” nós e é Rei e Sustentador da criação — em qualquer modelo que o homem use para retratar essa criação. A frase “toda criatura que há no céu, e na terra, e debaixo da terra” (Ap 5:13) equivale, em significado, ao conceito moderno de cada partícula e onda em cada dimensão do contínuo espaço-tempo do Big Bang, bem como a toda pessoa viva ou morta.
A Bíblia, portanto, não revela uma cosmologia científica, mas usa a linguagem e os mapas do mundo de sua época para falar de algo mais profundo: que Deus reina sobre tudo e todos, independentemente do modelo cosmográfico que cada geração usa para descrever o universo.
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