Por que fomos criados temporais, dependendo de processos? Por que Deus não nos criou prontos e perfeitos?
Certa vez, assistindo a um review sobre o filme Interestelar, ouvi o autor dizer algo com que concordei profundamente, à luz da minha experiência com esses conceitos: a maioria das dificuldades em ficções científicas é resolvida quando entendemos que o tempo não é uma linha de sucessão de acontecimentos, mas algo que acontece simultaneamente. Essa compreensão do tempo como algo relativo, e não linear, também resolve muitos dilemas teológicos, especialmente aqueles relacionados à soberania de Deus.
Se entendemos que o tempo foi criado por Deus, e que Ele não está sujeito a ele — talvez nem mesmo seres espirituais estejam —, percebemos que nossa limitação temporal é o que nos impede de compreender certas coisas. Vemos tudo como uma sequência: uma coisa acontece antes, outra depois. Mas Deus não está preso a esse fluxo. Isso nos permite superar questões como:
“Por que tal pessoa morreu tão cedo?”, “Por que Deus tirou aquele na juventude e deixou um criminoso viver até a velhice?”, “Por que Deus demora a punir as iniquidades?”, “Será justo alguém ser condenado eternamente por erros passageiros?”, “É justo alguém ser salvo apenas no fim da vida?”, “Quem criou Deus?”, “Deus vai morrer?”, “O que Deus estava fazendo antes de criar o mundo?”
Todas essas perguntas, assim como discussões sobre predestinação e livre-arbítrio, se tornam mais simples de encarar quando entendemos que Deus não está esperando algo acontecer para agir — Ele já agiu. As decisões de Deus já foram tomadas no exato momento em que tudo aconteceu. Para Ele, não há “antes” ou “depois”; há apenas o agora eterno. Somos chamados de salvos, predestinados, porque nosso destino já foi executado. Nossas ações já ocorreram; tudo está completo para Deus. Ele não está demorando para salvar, punir ou voltar. Ele já salvou, já puniu, já voltou. Nós apenas não percebemos isso porque somos limitados pelo tempo.
Esse conceito está ilustrado inclusive na natureza. Assim como não vemos a realidade presente das estrelas, mas apenas uma imagem do que elas foram em algum momento no passado, nós também não vemos o agora espiritual, mas uma imagem em processo. O que vemos é sempre o reflexo do que já foi. Quando Deus envia o dilúvio, para Ele, aquelas pessoas já estavam mortas, assim como as do futuro. Para Deus, não há espera pela punição. Tudo o que a pessoa faria ou deixaria de fazer já é conhecido. Os eleitos de Deus já foram eleitos, pois em um único instante, Deus viu toda a vida deles. Isso quer dizer que o convertido no fim da vida é, para Deus, o mesmo que alguém convertido a vida toda. Apocalipse, por exemplo, não é uma previsão de algo que irá acontecer, mas a visão de algo que já está acontecendo — os efeitos espirituais já estão em curso.
Tudo que é físico e temporal depende do tempo para acontecer, como ferver água. Já o que é espiritual, acontece de forma imediata, sem estar sujeito a esse processo. Por isso, Abraão, Moisés e outros crentes antigos já eram salvos pela graça, como se Cristo já tivesse ressuscitado. Seus corpos estavam limitados ao tempo, mas o efeito espiritual da cruz já era realidade. Cristo, ao morrer, não salvou apenas os que viriam, mas também os que já haviam vivido na esperança da graça.
Nada veio antes de Deus. Suas decisões são justas e completas, pois não se baseiam em suposições sobre o futuro, mas em um conhecimento absoluto do que já aconteceu. Por isso, profecias são tão confiáveis. Não é que o futuro esteja predeterminado por força ou imposição, mas porque ele já aconteceu diante de Deus, e por isso está registrado. Nós não somos obrigados a agir de determinada forma, mas Deus já viu como agiríamos, e suas ações refletem essa soberania. Ele tem misericórdia com base no que já aconteceu. Deus não era, nem será: Ele é. Deus não fez, nem fará: Ele faz.
Mas então, por que somos temporais? Por que Deus nos fez assim?
Só Deus sabe com certeza, mas podemos refletir. Imagine que o tempo não exista, que tudo o que você fez na vida acontecesse num único momento — isso seria sua identidade completa. Isso mostra que não somos apenas passado ou futuro, mas somos o resultado do que somos agora. Por isso, não devemos viver presos ao passado com mágoas ou arrependimentos paralisantes, nem ao futuro com ansiedade. Somos o resultado de nossas escolhas, e cada decisão, pensamento e ação ajuda a construir quem somos.
Essa perspectiva nos mostra que o passado só serve para nos apontar o que precisamos mudar hoje. O que decidimos agora diante do nosso passado é o que realmente importa. Deus, ao criar o tempo e o processo, não o fez por necessidade própria, mas por nossa limitação. Ele já sabe como tudo termina, mas nós não sabemos. Como um pai que vê seu filho crescer, Deus deseja que nós entendamos, apreciemos e valorizemos tudo que Ele já fez.
Uma criança, ao nascer, vê o pai pronto, mas não entende o porquê das regras. Conforme cresce, vai compreendendo as razões das proibições, das broncas, das lições. O processo é necessário para quem não estava lá no princípio, para que possamos compreender, valorizar e amar. Um construtor sabe por que as vigas estão ali. Mas quem só vive na casa e nunca a construiu, só entende seu valor de duas formas: quando dá um problema (como aconteceu no Éden), ou quando acompanha o processo desde o início.
Sempre que queremos explicar algo a alguém, fracionamos em partes — é o que chamamos de processo. Deus fez isso com a realidade. Nós não conseguimos entender tudo de uma vez, mas apreciamos a verdade como quem saboreia uma torta: por pedaços, sentindo cada textura, cada gosto. O tempo serve para isso. Não conseguimos reter toda a grandeza de Deus de uma só vez. Precisamos conhecê-Lo em partes.
Como diz em 1 Coríntios 13: “O amor jamais morre; as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará. Pois em parte conhecemos e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá.” A vida é isso: um processo que nos permite saborear, entender, perdoar, apreciar e se arrepender.
A lembrança, por exemplo, é um dom que revela nossa identidade. Somos aquilo que escolhemos deixar de ser, aquilo que enfrentamos, vencemos e superamos. Um ex-viciado é um vencedor. Um homem pobre que rejeita as drogas é alguém forte. Lembrar pode doer, mas também mostra quem somos hoje: o resultado, a síntese, a conclusão.
É por isso que mentir dentro de um casamento é tão destrutivo. Negar ou esconder a verdade exclui o cônjuge daquilo que você é. Somos aquilo que fazemos, mas, acima de tudo, somos aquilo que escolhemos fazer diante do que já fizemos. Arrependimento, mudança, perdão — tudo isso forma nossa verdadeira identidade.
Adão foi criado para saborear a criação aos poucos. Cristo, por sua vez, nos fará íntimos de Deus de maneira ainda mais profunda. Se Deus tivesse criado seres prontos e oniscientes, seriam perfeitos, sim — mas não seriam filhos. E Deus não quer criar outro Deus, Ele não precisava disso. Ele quer criar filhos, seres que aprendem, crescem, entendem e amam livremente.
Paulo Barbosa
Palavras-chave: soberania de Deus, tempo e eternidade, teologia do tempo, predestinação, livre-arbítrio, Deus fora do tempo, espiritualidade cristã, processos divinos, sentido da vida, salvação eterna, sentido do sofrimento, tempo na Bíblia, graça de Deus, propósito do tempo, criação e propósito humano
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