Leviatã: O Dragão do Caos e a Guerra Cósmica pela Ordem
O capítulo 41 do livro de Jó apresenta uma criatura que ultrapassa qualquer referência natural conhecida. Com seu corpo blindado, sua força devastadora, e a descrição de fogo e fumaça saindo de sua boca, o Leviatã não é apenas um exemplo da onipotência de Deus sobre os seres mais temíveis da criação — ele simboliza algo muito maior.
Para entender essa criatura, é necessário olhar para além do texto literal e situá-lo no contexto da aliança bíblica e das tradições religiosas do antigo Oriente Próximo (AOP).
Nas mitologias do AOP, o mar e os monstros marinhos representavam o caos primordial, uma força a ser domada para que a ordem fosse estabelecida no cosmos — e, por consequência, no mundo político e social. Essa luta entre o deus criador e a serpente do caos é conhecida pelos estudiosos como Chaoskampf, ou “combate contra o caos”.
O estudioso Hermann Gunkel defendeu que o relato da criação em Gênesis refletia esse motivo mítico, possivelmente inspirado no épico babilônico em que Marduque derrota a deusa serpente Tiamat e, com seu corpo, forma os céus e a terra. Dentro dessa leitura, a criação não é apenas um ato de formação, mas um triunfo da ordem divina sobre o caos rebelde.
Talvez por isso, ao longo da Bíblia, Babilônia seja retratada não apenas como um império histórico, mas como a personificação da ordem política humana em oposição ao Reino de Deus — a “cidade dos homens”, sustentada por uma estrutura que originalmente emergiu do caos vencido.
No entanto, John Day propôs uma perspectiva diferente, baseada na descoberta das tábuas de Ugarite (1928), sugerindo que a origem mais direta do Chaoskampf bíblico está nas mitologias cananeias. Nelas, o deus Baal enfrenta o dragão Lotan, uma serpente marinha ondulante, muito semelhante ao Leviatã bíblico.
Essa serpente também aparece em textos sumérios como O Retorno de Ninurta a Nippur, onde Ninurta derrota “a serpente de sete cabeças” como prova de seu poder sobre o caos. E, no livro do profeta Amós, vemos esse mesmo simbolismo quando Deus diz:
“Ainda que se escondam aos meus olhos no fundo do mar, ali ordenarei à serpente, e ela os morderá” (Am 9:3).
Tudo isso indica que a serpente do caos não era apenas uma imagem literária, mas um arquétipo profundamente enraizado na mente do antigo Oriente Médio — símbolo do mal primordial, da desordem e da rebelião.
As palavras hebraicas “tannin” (dragão) e “liwyatan” (Leviatã) são etimologicamente equivalentes às palavras ugaríticas tannin e lotan, demonstrando uma continuidade simbólica entre essas culturas. Em Isaías 27:1, vemos uma descrição poética desse monstro:
“Naquele dia o Senhor, com sua espada severa, grande e forte, castigará Leviatã, a serpente veloz, Leviatã, a serpente tortuosa; e matará o dragão que está no mar.”
Os termos hebraicos usados para descrever Leviatã — bariah (fugitiva) e ‘aqalaton (tortuosa) — correspondem exatamente aos adjetivos ugaríticos brh e ‘qltn, reforçando que o Leviatã é a forma bíblica do mesmo monstro mitológico do caos.
O Salmo 74:12–17 também faz referência a essa batalha, e o estudioso Mitchell Dahood observou que o texto contém sete referências ao pronome “Tu” — um possível paralelo às sete cabeças do Leviatã. Esse detalhe ecoa no livro do Apocalipse, onde João retrata o dragão de sete cabeças como símbolo de Satanás e do império demoníaco que se opõe ao Reino de Deus (Ap 12:3; 13:1; 17:3).
A tradição cristã primitiva continuou a desenvolver essa imagem. Os Odes de Salomão, um texto cristão-judaico do primeiro século, descrevem o Messias derrotando “o dragão de sete cabeças... para que eu destruísse sua semente.” Aqui, o combate mítico é reinterpretado à luz da missão redentora de Cristo, o verdadeiro guerreiro divino que vence o caos e restaura a ordem.
Portanto, o Leviatã de Jó 41 não é apenas uma criatura exótica — ele representa a essência do caos primordial, que precisa ser vencido para que o plano de Deus se cumpra. Assim como Marduque enfrentou Tiamat, Baal lutou contra Lotan e Ninurta destruiu a serpente de sete cabeças, Cristo enfrenta e derrota o verdadeiro Leviatã — Satanás — em uma batalha cósmica que culmina na cruz e será consumada na nova criação.
O Dragão Subvertido: O Leviatã, a Aliança e o Cosmos da Criação
A imagem de uma divindade combatendo o mar, o rio ou um dragão marinho — como o Leviatã ou Raabe — é um motivo recorrente não apenas nas mitologias do Antigo Oriente Próximo (AOP), mas também nas Escrituras hebraicas. Essa batalha simbólica era, em essência, a dramatização do caos sendo subjugado pela ordem, e frequentemente estava ligada à fundação de uma aliança ou cosmos.
No entanto, a Bíblia não está simplesmente repetindo as crenças mitológicas das culturas vizinhas. O fato de compartilhar termos, imagens e conceitos com os textos de Ugarite, por exemplo, não significa que Israel estivesse afirmando o mesmo panteão ou cosmovisão pagã. Pelo contrário: Deus se apropria de um vocabulário familiar ao mundo antigo para subvertê-lo — e redirecioná-lo ao seu próprio propósito e revelação.
Na narrativa bíblica, a criação da aliança é também a criação dos céus e da terra — não como um simples ato físico, mas como a estabelecimento de um cosmos ordenado e sagrado. Diferente da cosmovisão moderna, que tende a descrever o universo em termos materiais e astronômicos, a visão do AOP — refletida na Bíblia — entende o cosmos como um espaço teológico, centrado no templo, na terra prometida e no culto ao Deus vivo.
Esse contraste entre cosmovisões fica ainda mais evidente quando analisamos o texto hebraico de Gênesis 1. A palavra “dragão” que temos discutido — tannin — aparece no plural tanninim, traduzido como “grandes criaturas marinhas”:
Gênesis 1:21-22
“Deus criou os grandes monstros marinhos (tanninim) e todos os seres viventes que se movem, com os quais as águas estão cheias... E Deus viu que era bom. E Deus os abençoou, dizendo: ‘Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas dos mares; e que as aves se multipliquem sobre a terra.’”
Para o leitor antigo, essa passagem seria imediatamente reconhecida como uma resposta poética e teológica à mitologia local. Em vez de um Deus guerreando com um dragão cósmico para conquistar o mar, como nas histórias de Baal ou Marduque, o Deus de Israel cria essas criaturas com um simples comando verbal. E mais: Ele as abençoa e as inclui entre as obras “boas” de sua criação.
A implicação é profunda: o dragão do caos, que nas mitologias pagãs precisava ser derrotado para que a ordem fosse estabelecida, aqui é domesticado com uma palavra e tratado como parte obediente da criação. O que os outros deuses precisam destruir, o Deus de Israel simplesmente cria e governa com soberania absoluta. Essa ausência do Chaoskampf, da batalha com o caos, não é uma omissão acidental — é uma declaração teológica intencional. A subversão do mito é, em si, parte da mensagem.
Em alguns momentos da Escritura, o Leviatã ainda aparece como símbolo do caos que será subjugado na consumação da aliança — como em Isaías 27:1, onde Deus promete destruir a “serpente tortuosa”. Em outros contextos, ele representa a superioridade de Deus sobre as religiões pagãs, como um lembrete de que nenhum “deus” ou criatura mitológica está acima do Criador.
De qualquer forma, o Leviatã não é apenas uma criatura física ou um monstro marinho literal, mas um símbolo cultural e teológico profundamente enraizado no imaginário do antigo Oriente Próximo. Sua presença na Bíblia aponta para a soberania de Deus sobre todas as forças — naturais ou espirituais, históricas ou mitológicas — que representem resistência à Sua ordem redentora.
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