When Giants Were Upon the Earth - Capítulo 1 - O livro de Enoque

 


Gênesis 6:1–4 e o Livro de Enoque: Anjos, Gigantes e Tradições Antigas

O texto de Gênesis 6:1–4 tem sido alvo de interpretações diversas ao longo da história. A visão mais popular entre os judeus antigos e a igreja primitiva é a de que seres angelicais sobrenaturais se acasalaram com mulheres humanas, e seus descendentes foram gigantes e heróis de renome.

No entanto, interpretações acadêmicas mais recentes sugerem duas alternativas principais:

  1. Trata-se de reis tirânicos, que reivindicavam descendência divina para legitimar seu poder.

  2. Representa a mistura entre a linhagem justa de Sete e a linhagem ímpia de Caim, uma leitura mais moral do episódio.

O Livro de Enoque e os "Vigilantes"

O Livro de Enoque (especialmente o 1 Enoque, ou Enoque Etíope) é explícito ao afirmar que os responsáveis por esse episódio foram seres celestiais chamados “vigilantes”. Esses anjos caídos teriam corrompido a humanidade com revelações ocultistas e gerado uma linhagem híbrida e destrutiva. O texto condena tanto os vigilantes quanto sua descendência.

Quem foi Enoque?

Enoque é citado em Gênesis 5:19 como um homem que “andou com Deus”. Essa expressão aponta para uma vida de santidade, mas também implica uma intimidade profunda com o Criador. Curiosamente, o texto diz que “Deus o tomou” (Gn 5:24), e, ao contrário dos demais personagens da genealogia, não se afirma que Enoque “morreu”. A interpretação tradicional é reforçada por Hebreus 11:5:

“Pela fé, Enoque foi arrebatado, de modo que não experimentou a morte, e não foi achado, porque Deus o havia arrebatado.”

Os Três Livros de Enoque

Existem três livros apócrifos atribuídos a Enoque:

  • 1 Enoque (ou Enoque Etíope), o mais antigo e influente;

  • 2 Enoque (Enoque Eslavo);

  • 3 Enoque (Enoque Hebraico).

Embora sejam classificados como pseudepígrafos (obras atribuídas a autores que não as escreveram), estudiosos como J.H. Charlesworth argumentam que esses textos devem ser vistos como homenagens inspiradas por figuras do Antigo Testamento, e não como fraudes. Afinal, vários livros bíblicos foram escritos por escribas, e mesmo Moisés escreveu sobre patriarcas anteriores, como Abraão.

O professor Loren Stuckenbruck afirma que considerar pseudepígrafos como “falsos” é uma visão moderna e anacrônica, que ignora a antiga aceitação cultural desses escritos entre os judeus.

Além do Livro de Enoque, outros textos apócrifos conhecidos incluem:

  • Jubileus

  • Testamento dos Doze Patriarcas

  • Salmos de Salomão

  • Apocalipse de Esdras

O 1 Enoque e a Literatura Apocalíptica

Dentre os três livros atribuídos a Enoque, o Enoque Etíope (1 Enoque) é o mais relevante, sendo datado por volta de 300 a.C. Fragmentos desse livro foram encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto, o que reforça sua antiguidade e influência.

O 1 Enoque pertence ao gênero apocalíptico, ou seja, uma revelação feita por um ser sobrenatural a um destinatário humano. Segundo Yarbro Collins, os elementos característicos desse tipo de literatura incluem:

  1. Conforto e explicação para os fiéis;

  2. Visão da vitória de Deus;

  3. Imagens fantásticas que revelam o mundo espiritual;

  4. Linguagem simbólica e esotérica para evitar censura.

Estrutura do Livro

O 1 Enoque é composto por cinco partes principais:

  1. O Livro dos Vigilantes
    Descreve a rebelião de 200 anjos liderados por Semyaza e Azazel, que descem ao Monte Hermon, tomam mulheres humanas e geram gigantes violentos. Esses anjos também compartilham segredos ocultistas com os humanos, provocando uma corrupção generalizada que culmina no Dilúvio.

  2. O Livro das Parábolas
    Apresenta a visão de Enoque sobre o julgamento final dos anjos caídos e seus seguidores humanos. O destaque está na figura do Filho do Homem, também chamado de o Eleito, o Justo e o Messias. Esse trecho é considerado fundamental no desenvolvimento posterior da doutrina do “Filho do Homem”.

  3. O Livro dos Luminares Celestiais
    O anjo Uriel mostra a Enoque as leis astronômicas e calendáricas do cosmos.

  4. O Livro das Visões dos Sonhos
    Contém uma narrativa alegórica que vai de Adão até o período dos Macabeus, além de um prelúdio ao Dilúvio.

  5. A Epístola de Enoque
    Uma exortação aos justos para que se mantenham fiéis e santos.

Existe ainda um Livro dos Gigantes, antes conhecido apenas em versões gnósticas posteriores. Contudo, com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, foi possível recuperar um texto anterior, que serviu de base para as versões e corrupções gnósticas. Ele narra o nascimento dos gigantes e conta, por exemplo, que o rei mesopotâmico Gilgamesh ajuda os gigantes a encontrar Enoque e interpretar visões proféticas sobre o Dilúvio.

Enoque e o Cânon Bíblico

Embora alguns Pais da Igreja tenham considerado 1 Enoque como importante, ele nunca foi incluído no cânon das Escrituras reconhecido por judeus e cristãos ortodoxos. No Novo Testamento, o cânon do Antigo Testamento é frequentemente referido como “a Lei, os Profetas e os Salmos” (Lc 24:44). Não há indícios históricos de que 1 Enoque tenha feito parte dessa designação.

Contudo, sua importância cultural é inegável. Muitos Padres da Igreja — como Justino Mártir, Irineu, Orígenes e Clemente de Alexandria — conheciam e até se inspiraram em Enoque. Tertuliano, por exemplo, demonstrava grande apreço por ele. O próprio apóstolo Judas (Não o traidor) faz referência explícita ao livro (Jd 1:14–15).

Justino Mártir chegou a citar o relato do acasalamento angelical e da transmissão de artes ocultistas aos humanos como explicação para as mitologias pagãs que relatavam deuses copulando com mulheres.

Rejeição Medieval e Valor Histórico

A rejeição oficial de 1 Enoque ocorreu durante a Idade Média. Embora houvesse razões legítimas para o ceticismo, estudiosos como Nickelsburg sugerem que também houve preconceitos envolvidos. Por exemplo, a apropriação do livro por seitas gnósticas, como o maniqueísmo, levou figuras como Jerônimo e Agostinho a desconfiar da obra. Agostinho, influenciado por seu passado maniqueísta, rejeitou a ideia de anjos com corpos físicos.

No entanto, o fato de seitas distorcidas terem usado o livro não invalida seu valor. O mesmo ocorre com a própria Bíblia, frequentemente usada de forma equivocada por grupos heréticos. O abuso de um texto não elimina seu uso legítimo.

A ortodoxia cristã sustenta que apenas o Antigo e o Novo Testamento são inspirados por Deus (2Tm 3:15–16). No entanto, reconhecer o valor de obras não canônicas como fontes históricas ou literárias não é uma traição à fé. Os próprios autores bíblicos citaram cerca de vinte textos não canônicos — todos hoje perdidos — como fontes de informação, e não de doutrina.

Se a Bíblia respeita outras fontes históricas como apoio informativo cultural, por que nós não deveríamos fazer o mesmo?

A Influência de Enoque no Novo Testamento

R.H. Charles, um dos maiores estudiosos de literatura apócrifa, identificou cerca de sessenta exemplos em que o Novo Testamento parece ecoar a linguagem e as ideias do 1 Enoque. Segundo ele:

“1 Enoque teve mais influência no Novo Testamento do que qualquer outra obra apócrifa ou pseudepigráfica.”

Isso mostra que, embora não canônico, o livro exerceu profunda influência na teologia e imaginação dos primeiros cristãos — e continua sendo uma janela fascinante para compreender a cosmovisão judaica do Segundo Templo e os bastidores teológicos da igreja primitiva.

Além disso, o livro de Enoque oferece uma contextualização expandida do mundo nos dias que antecederam o dilúvio — um período que a narrativa bíblica aborda de forma relativamente breve. Essa ampliação de perspectiva pode lançar luz sobre outras passagens do Novo Testamento que aludem a eventos e personagens desse tempo sombrio da história humana.

Um exemplo está em Judas 7, onde, ao citar Sodoma e Gomorra, o autor menciona a busca por “carne estranha”. Essa expressão, frequentemente mal compreendida, não se refere simplesmente à homossexualidade, como muitos leitores modernos presumem. Na verdade, o pecado dos homens de Sodoma, de acordo com essa leitura mais atenta, não era apenas voltado para relações com outros homens, mas para uma transgressão ainda mais profunda: a tentativa de violar a ordem divina ao procurar relações com seres celestiais — anjos. Assim como nos dias de Noé, quando os "filhos de Deus" tomaram esposas humanas (Gênesis 6), os habitantes de Sodoma desejavam repetir o mesmo erro original, possivelmente buscando gerar uma descendência híbrida semelhante à dos antigos gigantes.

As palavras gregas usadas por Judas reforçam essa interpretação. A expressão traduzida como “imoralidade grosseira” (ek porneuo) implica uma forma extrema de depravação sexual. Já “carne estranha” (heteras sarkos) indica uma busca por um tipo de carne diferente da natureza humana comum — algo além da simples distinção entre sexos. Não se pode entender essa “carne estranha” como referência à homossexualidade por algumas razões fundamentais: primeiro, a homossexualidade é o desejo por carne do mesmo gênero, não por carne de natureza diferente; segundo, ainda que seja condenada em outros textos bíblicos (como Romanos 1:26, com o termo para physin, “contrário à natureza”), o foco aqui é outro — um tipo de transgressão mais próximo do que ocorreu entre anjos e humanas.

Judas, portanto, traça um dupleto poético: une os pecados dos Vigilantes antes do dilúvio com os de Sodoma, mostrando que ambas as histórias refletem tentativas de ultrapassar as fronteiras entre o céu e a terra por meio de práticas sexuais antinaturais e espiritualmente rebeldes.

A Prisão dos Titãs 

Pedro, por sua vez, localiza a prisão dos anjos caídos — os Vigilantes — nas profundezas do Sheol, à semelhança de Enoque. Ele afirma que Deus “não poupou os anjos quando pecaram, mas os lançou no inferno e os entregou a cadeias de escuridão tenebrosa” (2 Pedro 2:4). Curiosamente, a palavra traduzida como “inferno” aqui não é gehenna, usada normalmente no Novo Testamento, mas tartaroo, uma referência direta ao Tártaro grego — o abismo mais profundo do submundo, onde, segundo a mitologia, os titãs estavam aprisionados. Em 1 Enoque, é exatamente neste local abissal que os Vigilantes são acorrentados (cf. 1 En. 63:10–64:1).

Outra passagem enigmática que ganha clareza à luz da tradição enoquiana é 1 Pedro 3:18-20:

“Pois também Cristo sofreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus, sendo morto na carne, mas vivificado no espírito, no qual ele foi e pregou aos espíritos em prisão, porque eles anteriormente não obedeceram, quando a paciência de Deus esperava nos dias de Noé...”

Alguns intérpretes modernos consideram essa pregação como uma metáfora para a proclamação do evangelho aos espiritualmente perdidos na Terra. No entanto, o texto sugere algo mais específico: os “espíritos em prisão” são mencionados como desobedientes nos dias de Noé, não nos dias de Cristo. Isso remete diretamente aos anjos caídos de 1 Enoque 10, como Azazel e seus companheiros, os quais estão presos no Sheol até o dia do julgamento. Dentro dessa tradição, Cristo, ao morrer, desce ao Sheol — como afirma o antigo Credo dos Apóstolos — e proclama sua vitória sobre esses espíritos rebeldes. Tal cena ecoa a jornada de Enoque pelo submundo (1 En. 17–22), quando ele vê os anjos acorrentados, aguardando sua sentença.

Essa ideia é reforçada por 1 Enoque 18:13 e 19:1–2:

“Este lugar é o fim do céu e da terra: é a prisão para as estrelas [anjos] e os poderes do céu... Aqui estarão, em diversas formas, os espíritos dos anjos que se uniram com mulheres. Eles contaminaram o povo e os conduziram ao erro, para que oferecessem sacrifícios aos demônios como se fossem deuses, até o grande dia do julgamento.”

O eco entre os textos é inegável. Mais do que isso, estudiosos como George Nickelsburg argumentam que a estrutura e linguagem de 1 Pedro refletem diretamente a de 1 Enoque 108, sugerindo não apenas conhecimento, mas respeito — talvez até dependência literária. A mensagem de Pedro, nesse contexto, se insere em uma cosmovisão já familiar ao seu público: uma visão onde o conflito espiritual entre os céus e a Terra passa pelo juízo de seres espirituais, que transgrediram os limites divinos e foram lançados às profundezas até o dia final.

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